Durante uma
longa viagem em estrada de ferro, estava eu há algum tempo, num dia de
extenuante calor, em companhia dum oficial de cavalaria que tinha tomado parte
em alguns combates na grande guerra. Contou-nos alguns episódios, mas nenhum me
impressionou tanto como o que se segue:
– Foi, disse
ele, no dia seguinte a uma vitória custosamente ganha com esforços e cansaço
extraordinários. Tinham-me encarregado de levar uma ordem importante à
retaguarda, quando, no momento de partir, o meu cavalo, estafado, recusou
marchar. O animal mancava e não podia caminhar. Sem demora, eu fui buscar outro.
Este era tão bravo e manhoso, que alguns minutos se passaram antes que me tivesse
sido possível montá-lo e sujeitá-lo à obediência. Empinava, escoiceava e quando
eu estava quase a vencê-lo, estacava ao menor obstáculo e continuava com os
seus pinotes.
Entretanto,
era preciso apressar-me, A mensagem de que eu era portador não admitia nenhuma
demora e a estrada, obstruída com tropas e materiais, dificultava ainda mais a
minha viagem. Era meio-dia e estava apenas no meio do caminho. O ar estava
pesado e abafadiço. Nuvens de pó secavam-me a garganta. Estava esfalfado e o
meu cantil estava vazio. Sentia-me desfalecer. Numa volta do caminho descobri
uma fonte abundante, junto da qual alguns soldados descansavam e enchiam os
seus cantis.
Desejava
descer para fazer o mesmo, mas o cavalo, como que pressentindo a minha
intenção, deu pinotes tão furiosos, que tive de renunciar à minha tentativa
para não excitar os risos grosseiros do acampamento. Aborrecido com este
contratempo, desatei o meu cantil e, dirigindo-me a um dos soldados, o único
que parecia não se rir do meu infortúnio, pedi que me desse o enchesse. Era de
mau aspecto, de sobrecenho carregado, mas ainda assim estava eu longe de
esperar resposta tão cruel:
– Encha-o
você! Diante destas palavras, a minha cólera não teve limites.
–
Desgraçado! – gritei-lhe; – Tomara que um dia eu o encontre a morrer de sede e
a pedir um copo de água fria, para eu ter também o prazer de lhe recusar!
Em seguida,
dei de esporas ao cavalo e parti numa corrida desenfreada, sem fazer caso dos
convites dos outros soldados, que me gritavam que voltasse. Uma légua depois,
um rapazinho, compadecido, deu-me água, a mim e ao meu cavalo. Em troca dei-lhe
um punhado de dinheiro, mas comparando a prontidão que ele teve em me servir
com a conduta dos meus companheiros de armas eu senti como que uma onda de ódio
a revolver-se dentro de mim. O rosto daquele soldado ficou gravado em traços
indeléveis na minha imaginação e jurei procurá-lo – Deus me perdoe! – Até para vingar-me.
Durante
dois anos, nos campos de batalha, entre os moribundos, continuei sem resultado
esta busca ímpia. Enfim, chegou o dia. Em resultado de alguns ferimentos, eu
fui levado para um hospital de guerra. Não estando ainda em estado de retomar o
meu serviço, eu empregava o tempo a cuidar dos que estavam mais feridos que eu.
Nunca me
senti tão compadecido para com os pobres soldados como no meio destas cenas de
dor e de sofrimento, das quais os campos de batalha não dão ideia nenhuma.
Tinha verdadeiro prazer em aliviar-lhes as dores e alegrá-los. No meio destas
novas ocupações, esqueci o meu “inimigo”. Era assim que eu chamava ainda aquele
que me tinha recusado o copo d'água fria.
Depois duma
grande batalha, muitos feridos vieram para o nosso hospital. Todas as salas
ficaram repletas. O calor era medonho e os doentes sofriam cruelmente de sede e
da atmosfera abrasadora da sala. De todas as camas gritavam: Água! Água! Água! Peguei
num copo e num balde d'água gelada e fui de fileira em fileira, distribuindo o
líquido precioso a todos os que o pediam. Só o cair da água no copo já lhes
fazia brilhar a alegria nos olhos abrasados pela febre.
Quando eu
andava pelo meio das coxias, entre as camas, um homem deitado do outro lado da
sala levantou-se de repente, gritando:
– Água!
Água! Pelo amor de Deus!
Fiquei
horrorizado. Tudo o que me cercava desapareceu aos meus olhos e não via senão a
ele. Era o que me tinha recusado um copo de água fria! Aproximei-me, mas não me
reconheceu. Caiu exausto sobre o travesseiro, com o rosto voltado para a
parede. Então senti uma pressão na alma... Ouvi uma voz dentro de mim a dizer
distintamente:
– Faze-lhe
ouvir o barulho da água... Passa e torna a passar diante dele... Dê a todos os
que o cercam e não a ele. Vinga-te!
Mas ao
mesmo tempo ouvi o murmúrio doutra voz. Uns dizem que era a voz da minha
consciência... Outros a de Deus... E outros ainda o resultado das lições de
minha mãe. Fosse qual fosse, esta voz dizia:
– Meu amigo...
Hoje é o dia propício e a hora de pagar o mal com o bem, de perdoar, como Jesus
te perdoou. Vai e dá de beber ao teu inimigo.
Um
movimento involuntário me arrastou para a sua cama. Amparei-lhe a cabeça com o
braço e aproximei o copo dos seus lábios febris. Oh! Como bebeu! Nunca
esquecerei sua expressão de alívio e o olhar que me lançou, sem pronunciar
palavra. Vi que estava profundamente comovido. O pobre teve de sofrer amputação
de uma perna e pedi ao médico autorização para o tomar sob os meus cuidados.
Tratava-o
dia e noite. Durante muito tempo conservou o mesmo silêncio, até que um dia,
quando me afastava de sua cama, agarrou-me pelo paletó e, puxando-me para bem
junto de si, disse-me em voz baixa:
– Lembra-se
você do dia em que me pediu de beber?
– Sim,
camarada; mas o que lá vai, lá vai. Isso acabou.
– Para mim
não, continuou. Não sei o que tinha naquele dia. O capitão acabara de me repreender...
Tinha febre, estava encolerizado. Em instantes eu estava envergonhado, mas era
tarde demais. Há dois anos que o procuro para lhe pedir perdão. Quando
reconheci aqui, lembrei-me do que me tinha dito e tive medo. Diga-me: Você me
perdoa?
Eu tinha-o
procurado dois anos para me vingar... Ele me procurou para se humilhar e me
pedir perdão. Qual dos dois tinha seguido melhor o espírito de Cristo? Certa
confusão se apoderou de mim.
– Camarada,
disse-lhe eu depois de uma pausa – você é muito melhor que eu. Não falemos mais
nisso!
Eu estava
presente quando lhe fizeram a amputação. Já o amava como a um irmão. Ele sabia
que ia morrer, mas antes me confiou alguns objetos para mandar a sua irmã,
juntamente com uma carta que me ditou. Perguntou-me se não haveria na Bíblia
uma passagem que tratasse dum copo de água.
– Peço a
você, disse-lhe eu, que não torne a falar nisso. Mas ele continuou:
– Você não
sabe, meu fiel amigo, o bem que fez em não me recusar o copo de água.
Naquela noite
a febre do doente aumentou e por vezes parecia delirar. Contudo percebia-se que
a sua confiança em Jesus Cristo era completa. Tinha a certeza de estar salvo.
Assim o mostrava nas suas orações. Pela madrugada, mexeu-se, acomodou a cabeça
no travesseiro, e fechou os olhos para os não abrir mais neste mundo. Tinha
adormecido para só acordar na eternidade.
Ao vê-lo
morrer assim, tranquilo e consolado, que grande prazer senti em ter-lhe dado de
beber... Em ter pagado mal com o bem! Lembrei-me então destas palavras de
Jesus: “Todo o que der a beber a um daqueles pequeninos um copo de água fria,
não perderá a sua recompensa”.
Fonte: livro Pérolas Esparsas
Fonte: livro Pérolas Esparsas
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