Que direção você pretende seguir? |
Era inverno. O sol acabava de desaparecer no horizonte e as sombras da
noite pairavam sobre a aldeia. Sozinha, numa poltrona antiga, próximo de um
lume crepitante, uma senhora de certa idade, cabelos prateados, seguia, distraída,
os últimos clarões do dia. Enquanto isso, o seu pensamento se embrenhava em
recordações do passado.
De repente abriu-se a porta e ouviram-se passos rápidos.
– Então! Se divertiu, Bertinha? Disse a idosa senhora, pondo a mão afetuosamente
nos louros anéis da menina que acabava de entrar.
– Oh!, tia Rute, respondeu esta, e agora venho pedir-lhe que me conte
uma de suas lindas histórias.
Berta era filha única. Alguns meses antes perdera a mãe. Agora estava de
visita em casa da tia, da qual soubera ganhar a afeição. Mas a tia Rute era
muito perspicaz e por isso havia descoberto um grande defeito na sobrinha.
Para sua tristeza, ele percebeu que a criança não tinha escrúpulo nenhum
em mentir. Aliás, mesmo descoberta, não corava com as suas mentiras. Ora, se
tia Rute tinha horror especial por algum pecado, era por certo pela mentira.
Sendo assim, ela resolveu corrigir a menina tanto quanto possível deste defeito.
Prometeu fazê-lo nessa mesma noite, com a ajuda do Senhor, mostrando-lhe o
perigo de seu pecado.
– Vamos, toma o teu crochê, minha querida, disse-lhe ela, e vem
assentar-se ao pé de mim.
A criança obedeceu, e quando ficou bem instalada junto da tia, esta
principiou a falar nos seguintes termos:
– Sabes, Berta, hoje eu estou velha, a memória começa a faltar... Mas apesar
disso, eu me recordo muito bem duma história que vou te contar.
Na minha juventude, eu andava na escola com uma menina chamada Ana Clara.
Ela era terna, amável, sensível, e ao mesmo tempo muito estudiosa. Ela tentou
travar amizade comigo, mas eu resisti. Eu não lhe tinha nenhuma amizade pela
razão de que ela era minha rival. Não fosse ela, eu seria a primeira na nossa
classe. A pobre Aninha não sabia a que atribuir a minha frieza.
Eu, ainda que educada por pais cristãos, esforçava-me muitas vezes por
fazer mal à minha companheira. Excitava as outras contra ela, e como ela era
muito tímida para se defender, eu triunfava quase sempre. Um dia, na classe,
estávamos nós a soletrar a palavra trouxe. Com a sua voz fraca e meiga, Aninha
soletrou: t, r, o, u trou, x, e, xe, trouxe. A mestra, não tendo ouvido bem,
exclamou: Mal! Adiante.
Mas, voltando atrás de repente, disse-lhe:
– Tu não soletraste: t, r, o, u, c, e? Não senhora, respondeu Aninha, eu
disse: x, e, xe. A mestra duvidava ainda, e voltou para mim:
– Rute, como disse a Ana?
Atravessou-me o espírito um pensamento diabólico. Vi-me a primeira na
minha classe, deixei-me arrastar pelo mal e pronunciei uma odiosa mentira.
– Ana disse c, e, ce, respondi eu sem hesitar.
A professora voltou-se para ela. Confusa com a minha acusação, a minha
companheira baixava a cabeça em silêncio, enquanto um rubor súbito lhe dava
toda a aparência duma culpada.
– Ana, disse a senhora severamente, eu não julgava que fosses mentirosa.
Vai-te sentar naquele canto, e no fim, das aulas, espera-me.
Eu conseguira o que desejava. Ana caíra em desagrado, e eu fora
proclamada primeira; mas não era feliz. Quando terminou a aula, eu fiz que
tinha perdido alguma coisa e fiquei na sala. E ouvi a voz da mestra:
– Ana, vem cá.
Ouvi então o passo leve da minha companheira.
– Como pudeste mentir assim? Continuou a mestra.
– Eu não menti, minha senhora, respondeu a meiga criança. Mas o som da
voz, o tremor que dela se apossou, parecia, desmentir as suas palavras.
– Dá cá a mão, disse a professora.
É necessário dizer-te, Berta, continuou a Tia Rute, que no meu tempo, as
crianças eram mais severamente castigadas do que hoje. Por isso, eu não fiquei
surpreendida por ouvir cair na mãozinha da inocente menina as repetidas
pancadas da cruel palmatória. Ah! Bem podes olhar para mim com assombro, Berta.
Cada pancada ia-me ao coração. Eu, porém, não tinha coragem de declarar a minha
falta. Deslizei mansamente sala fora.
Ao voltar para casa, vi Aninha, que caminhava lentamente, e com uma mão
segurava os livros enquanto com a outra limpava as lágrimas que lhe corriam das
faces. Os seus soluços entrecortados penetravam até ao fundo da minha alma. Ela
caminhava assim chorando, quando de repente, batendo com o pé em uma grande
pedra, caiu, espalhando-se lhe os livros pelo chão. Eu apanhei-os em silêncio e
entreguei-os a ela.
Os seus olhos azuis, úmidos de lágrimas, fixara-se sobre mim, e com uma
voz meiga e amável, disse-me ela:
– Obrigada, Rute.
O meu coração pulsava violentamente; mas eu não me atrevi a falar-lhe. Entrei
precipitadamente em minha casa. Quando cheguei em casa, pensei que, visto como
todos ignoravam a minha falta, eu podia rir e tagarelar como de costume. Mas ai
de mim! Isto não me tornava menos pesado o fardo que me oprimia o coração. Eu
não tinha necessidade dum acusador humano, pois o olhar de Deus perseguia-me.
Mas quanto mais perturbada me sentia, mais me esforçava por parecer
alegre, de tal modo que várias vezes durante o serão fui repreendida pela minha
alegria ruidosa, quando eu muito a custo podia conter as lágrimas. Por fim
retirei-me para o meu quarto. Não pude orar, bem depressa me deitei e fechei
resolutamente os olhos.
Mas dormir era-me impossível! O velho relógio da casa fazia estremecer o
meu pobre coração com as sua vibrações prolongadas, e quando soou meia-noite,
pareceu-me ouvir dobrar os finados. Voltei-me, tornei-me a voltar sobre o
travesseiro, mas parecia-me duro como pedra.
Aqueles belos olhos azuis inundados de lagrimas, estavam constantemente
diante de mim e os meus ouvidos não cessavam de ouvir as pancadas repetidas da
cruel palmatória... Enfim, incapaz de permanecer mais tempo neste estado,
saltei abaixo do leito e fui-me assentar ao pé da janela. Tudo tinha um aspecto
triste e sinistro, que me gelou. As árvores erguiam-se sombrias e imóveis, e pareciam-me
duma altura desmedida. Nada havia, até nas grades brancas e nas aléias ensaibradas,
que não me parecesse ter alguma coisa estranha.
De novo me dirigi para o meu leito e via a colcha branca que minha mãe
me tinha dado no dia de ano novo, alguns meses antes de morrer. No mesmo
instante veio-me à memória uma infinidade de pensamentos. Recordei-me daquela
última súplica que minha mãe fizera em meu favor: “Ó Senhor! Desperta na minha
querida Rute a sinceridade e a sabedora que vêm do alto!”. Esta recordação
compungiu-me. Em vão tentei expulsá-la da memória. Ela me perseguia incessantemente.
Desfiz-me em lágrimas, mas as lágrimas não me deram a paz.
Cada vez mais agitada, tomei por fim o partido de ir para o quarto de
meu pai e, lançando-me sobre o seu leito, exclamei soluçando: Papai! ó papai...!
Não pude dizer mais nada. Meu pai tomou-me nos braços, encostou-me a cabeça ao
seu peito e procurou acalmar-me. Quando em parte o conseguiu, eu confessei-lhe
o motivo das minhas lágrimas. Oh! como ele pediu ao Senhor que perdoasse a sua
Rutezinha!
– Querido pai, lhe disse eu, quer acompanhar-me agora à casa da pobre
Aninha?
– Agora?! – Repetiu ele muito surpreendido.
– Esperemos pela manhã, minha filha.
Toda demora era para mim um verdadeiro suplício. Todavia esforcei-me por
ter paciência e depois de ter abraçado meu pai, eu voltei para o meu quarto, mas
as pálpebras fatigadas não podiam fechar-se. Eu ansiava por ir pedir
perdão a Aninha. De todo o coração suspirava pelo dia. Depois de em vão ter
esperado alguns minutos, que me pareceram longos como horas, foi-me impossível
resistir mais tempo à voz da consciência. Então, precipitando-me de novo ao
quarto de meu pai, eu supliquei-lhe que no mesmo instante me levasse à casa de
Aninha.
– Ah! murmurei eu sem saber bem o que dizia, se ela morresse antes de me
ter perdoado!
Meu bom pai olhou para mim com inquietação, colocou-me sua mão no rosto
febril e depois de ter refletido disse: “Está bem, eu te acompanharei, minha
filha”. Alguns minutos depois estávamos nós a caminho. Ao aproximarmo-nos
da casa de Aninha, nos vimos várias luzes que se cruzavam em todos os sentidos
na casa. Tremula, cheguei-me para meu pai.
Ele abriu a grade, sem ruído, e entramos em silêncio. O doutor, que
nos conhecia, saía nessa mesma ocasião da casa. O seu assombro foi grande
ao ver-nos ali a tal hora, mas como descreverei eu o que sofri, quando ele
disse a meu pai que Aninha estava com um ataque cerebral!
– Sua mãe, continuou o doutor, disse-me que há alguns dias ela não
andava bem, apesar disso quis ir à escola como de costume; mas parece que ontem
à tarde ela voltou completamente mudada. Não pode cear, e sentou-se à mesa sem
dizer uma palavra. Como parecesse triste, sua mãe tratou de descobrir o motivo;
mas foi em vão. Por fim a pobre criança foi-se deitar, e cerca de uma hora
depois, chamaram-me. Desde então não a deixei, e acho o seu estado muito grave.
– No seu delírio, pronunciou várias vezes o nome da Rute, ajuntou o
doutor olhando para mim; com uma voz suplicante pedia-lhe que tivesse piedade
dela e que a salvasse.
Oh! Berta, que nunca sintas o pungente remorso que me repassou o coração
ao ouvir estas palavras! À força de súplicas, consegui da mãe de Aninha licença
para vê-la, por um instante. A viúva tomou-me pela mão e conduziu-me ao quarto
da filha. Desde que a vi, perdi toda a esperança; as sombras da morte
pareciam velar já a sua bela fronte e os seus olhos azuis. Consternada,
trêmula, ajoelhei ao pé do seu leito, e murmurei palavras de arrependimento. Levantei
os olhos para ela como para lhe implorar perdão, mais ai de mim! Não, Berta,
dos seus lábios nunca mais eu devia ouvir uma palavra de perdão! Quando de novo
tornei a ver Aninha ela dormia.
Suas faces não mais seriam coloridas desse vivo encarnado que as animava
nos dias de saúde. As suas longas pestanas castanhas lançavam como que uma
sombra fúnebre, sobre o seu rosto de mármore. Não mais havia delírio, não mais
haveria palpitações de coração. Aquela mãozinha branca que ela apresentara às
pancadas da palmatória estava junta a outra. O seus olhos não mais deviam
encher-se de lágrimas, o seu seio, não mais devia arfar de aflição. Ela dormia
o sono da morte!
A minha dor foi viva, o meu desespero imenso! Eu não podia me perdoar
por ter contribuído para, pela minha indigna mentira, fazer descer ao túmulo tão
meiga criança. Quão longo foi o inverno que se seguiu! A febre assaltou-me
logo a seguir a estes sofrimentos morais. No meu delírio, eu chamava sem cessar
pela pobre Aninha. Contudo o Senhor ouviu as orações de meu querido pai e
me levantou do leito de dor.
Quando a primavera semeou de flores a sepultura de Aninha, permitiram-me
que fosse visitá-la. Eu não poderei dizer quão dolorosamente comovido ficou o
meu coração quando sobre o mármore branco li estas palavras: ANA CLARA. Ajoelhei-me
junto da sepultura, e orei durante muito tempo ao Senhor para que me perdoasse. Desde
esse momento, Berta, eu fiquei aliviada, fortificada e consolada.
Pronunciando estas palavras, a tia Rute colocou ternamente a mão na
cabeça da sobrinha. Desde há muito Berta se sentia comovida, e agora vertia
lágrimas ardentes. Sua tia não tentou acalmá-la, porque esperava que estas
lágrimas lhe seriam salutares.
– Peça por mim, querida tia, murmurou Berta.
A tia fez subir ao Céu ardentes súplicas pela sua querida sobrinha. Berta
nunca mais esqueceu aquele serão, porque um raio de luz divina acabava de
penetrar-lhe na alma.
A falsidade apareceu-lhe sob o seu verdadeiro aspecto, e ela sentia a
necessidade de procurar o socorro de Deus. A tia Rute não se arrependeu de ter
assim, evocado a mais triste recordação do seu passado, vendo o bem que dela
resultou, porque esta encantadora menina, cuja boca fora tantas vezes manchada
pela mentira, tornara-se, com o passar do tempo, um modelo de sinceridade, de
veracidade e retidão, como o devem ser todos os meninos e meninas que querem
servir a Jesus.
Fonte: livro Pérolas Esparsas
Nenhum comentário:
Postar um comentário