Flávio Azevedo
O compositor e pianista, João Roberto Kelly, autor de "Cabeleira do Zezé", hoje, está com 78 anos. |
Blocos de Carnaval estão tirando do seu repertório marchinhas consideradas “incômodas” por conta das suas letras que remetem a alguma forma de preconceito ou violência. “O Teu Cabelo Não Nega”, “Olha a Cabeleira do Zezé”, “Mulata Bossa Nova”, “Maria Sapatão” e outras marchinhas estão sendo evitadas. O assunto divide opiniões. Há quem classifique as letras como racistas, misóginas e transfóbicas; e há quem considere a ideia “um grande exagero”.
Autor de marchinhas controversas, o compositor João Roberto Kelly defende suas composições. Ele diz que nunca teve a intenção de ofender nenhum grupo e que suas canções foram feitas para incentivar a brincadeira. “Estamos falando de músicas que são sucesso há 40, 50 anos”. Ele sita o exemplo da canção “Maria Sapatão”. Segundo ele a música desmistifica preconceitos. Ele apresenta um trecho da canção (“O sapatão está na moda/O mundo aplaudiu/ É um barato, é um sucesso/ Dentro e fora do Brasil”) e afirma que os versos trazem a discussão temas considerados tabus.
O presidente do Cordão do Bola Preta, Pedro Ernesto, declarou que “Carnaval é momento maior da alegria e essas músicas foram feitas lá atrás, em uma época que não tinha o politicamente correto”. Ainda segundo Ernesto, ele nunca soube de alguém que tenha ficado ofendido com uma marchinha de Carnaval e acrescenta que “tirar “O Teu Cabelo Não Nega” e “Cabeleira do Zezé” seria matar o Carnaval”.
Antes das acirradas discussões dos tempos modernos, músicos e compositores deixavam a imaginação fluir. O comportamento das pessoas, as profissões, as classes sociais, as mazelas políticas, um amor não correspondido e fatos de repercussão; acabavam servindo de inspiração para as marchinhas. Num tempo em que palavras como discriminação, preconceito e racismo eram pouco utilizadas, o Carnaval, período em que homens se vestem de mulher; mulheres de vestem de homem; e ocorre uma inversão de papeis; tinha outros propósitos. As trocas são muito bem apresentadas pelo antropólogo Roberto Damatta, que fala muito de Brasil e Carnaval em suas obras.
Nos anos 60, longe dessas discussões, época em que a preocupação era com a Ditadura Militar, os longos cabelos para homens ainda não eram bem aceitos pela sociedade. E foi a partir dessa realidade que João Roberto Kelly e Roberto Faissal se uniram para escrever “Cabeleira do Zezé”. Concordando ou não, lançar dúvida sobre a masculinidade do outro é uma brincadeira que existe em todos os meios masculinos desde que o mundo é mundo. Certamente guiados por essa lógica, em 1964 os compositores colocaram em cheque a “Cabeleira do Zezé”. O que Kelly e Faissal não imaginavam é que para confrontar o “status quo”, ainda na década 60 a maior parte dos artistas adotariam os cabelos longos como sinal de rebeldia.
Kelly conta como tudo aconteceu
Em março de 2014, uma reportagem assinada por Artur Xexéo, trás uma entrevista com João Roberto Kelly. Naquele ano, “Cabeleira do Zezé” estava comemorando 50 anos, período em que o Carnaval Carioca ganhou outras feições e maneiras de ser festejado.
– O Teatro Municipal não promove mais o baile de segunda-feira. A TV Excelsior faliu. O desfile de fantasias saiu de moda. As escolas de samba trocaram a Avenida Presidente Vargas pelo Sambódromo. Só uma das características marcantes do carnaval de 1964 se manteve na folia de hoje. Para animar qualquer baile ou desfile de bloco, é só tocar a “Cabeleira do Zezé”, diz a reportagem.
A historiadora e coautora do espetáculo “Sassaricando”, Rosa Maria Araújo, diz que “a marchinha de carnaval é como uma crônica, só que musical”. Ela acrescenta que “as marchinhas tratam do cotidiano, do trivial, do que é circunstancial, do que aconteceu naquele ano na política, na sociedade, na economia. Quase sempre fazendo sátira, com duplo sentido e muito humor. Foi feita para ser descartável, para brincar naquele carnaval”, analisa.
O controverso foco na “cabeleira” de um fictício “Zezé” é explicado por Kelly. Ele afirma que a explosão dos Beatles motivou a canção. Os integrantes do grupo britânico chamavam a atenção também pelos cabelos longos, numa época em que “homem que era homem não usava cabelo grande”.
– Eu tinha 25 anos, era diretor musical da TV Excelsior e nunca tinha composto música para carnaval. Essa foi escrita no Bar São Jorge, que ficava ali na Avenida Princesa Isabel, pertinho do Túnel Novo. Eu ia sempre lá, depois do trabalho, para jogar conversa fora. O São Jorge tinha um garçom, o Zé Antônio, que era a cara dos Beatles. Se eu fosse desenhista, teria feito uma caricatura. Como sou compositor, fiz uma música. Ali mesmo, batucando no balcão: “Olha a cabeleira do Zezé/ Será que ele é? Será que ele é?” – lembra Kelly, acrescentando que todo mundo no bar achou engraçado, cantou junto e ele seguiu compondo: “Será que ele é bossa nova?/ Será que ele é Maomé?/ Parece que é transviado/ Mas isso eu não sei se ele é”.
Concorrentes
Segundo João Roberto Kelly, "Cabeleira do Zezé" também caiu nas graças do público por ter sido lançada por Jorge Goulart, à época, no auge da carreira. |
“Cabeleira do Zezé” enfrentou algumas concorrentes para alcançar o posto de maior sucesso de 1964. “A índia vai ter neném”, de Haroldo Lobo e Milton de Oliveira, interpretada por Dircinha Batista, parecia ser a sua maior rival, mas não teve fôlego para chegar à disputa de mais tocada. Em cima da hora, apareceu um samba-coco enigmático, o “Bigorrilho”, de Paquito, Sebastião Gomes e Romeu Gentil. Mas “Bigorrilho”, na voz de Jorge Veiga, acabou fazendo mais sucesso no período pós-carnavalesco do que nos salões. No fim das contas, o carnaval de 1964 tinha duas marchinhas que não paravam de tocar. Além da “Cabeleira do Zezé”, caiu no gosto popular a “Marcha do remador” (“Se a canoa não virar/ Olê, olê, olá”), de Antonio Almeida, defendida por Emilinha Borba.
Na Quarta-feira de Cinzas daquele ano, Chacrinha apresentou um programa especial na televisão para eleger a marchinha mais executada no Carnaval. “Marcha do remador” ganhou por um voto de diferença. Pura precipitação. Quando chegou a hora de se pagar os direitos autorais, não houve dúvidas: “Cabeleira do Zezé” foi a campeã.
Texto da Série "Carnaval de Antigamente", por Flávio Azevedo.
Texto da Série "Carnaval de Antigamente", por Flávio Azevedo.
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