O meu primeiro
cigarro custou-me uma horrível dor de cabeça. Todos os meus camaradas haviam
tentado persuadir-me disso, mas como me tivesse na conta de um rapaz
extraordinário, pensei que faria uma exceção à regra e não teria de sofrer tais
consequências. A experiência que se seguiu logo me convenceu da justeza de suas
predições. Como, porém, tinha ouvido minha mãe muitas vezes dizer que eram
necessários grandes esforços e perseverança para fazer um homem, supus que isto
implicava também um tal esforço, pelo que persisti na tentativa até que aos
vinte anos já me havia tornado fumante inveterado, mas alquebrado em forças
como meu avô, e ainda mais nervoso do que ele.
Casei-me aos vinte
e três. Fisicamente eu era um marido aniquilado. A requisição de meu médico,
que me disse que eu deixaria minha mulher na viuvez caso continuasse mais um
ano na burocracia e com esse abominável vício, tomei mulher e filha e parti
para o extremo ocidente, onde alguns de meus amigos já me haviam precedido
algum tempo antes. Arrendei um sítio a cinco quilômetros da cidade – sítio com
boas matas e abundante água, que me prometia excelentes negócios. Minha saúde
estava outra vez restabelecida de modo a permitir-me trabalhar da manhã até a noite. Luíza era boa mulher e
excelente companheira; e nossa filhinha, que ao tempo do meu último cigarro
começava justamente a balbuciar, era o Sol e a alegria de nossa casa.
Depois de três anos
de demora ali, eu possuía dezesseis hectares de milho e oito de trigo, além de
grandes pastagens. Nossa casinha era muito pitoresca e bem arranjada. A primeira
choça eu havia transformado em celeiro de trigo. Quando comunicara a Luíza o
que me havia declarado médico, ela, sem resposta a minha pergunta, se estava
pronta a deixar pai, mãe e amigas para ir comigo em busca de uma nova pátria no
longínquo ocidente, dissera:
– Sim, Jorge, irei
contigo para onde fores, e tudo farei que seja para teu bem, com a condição de
que agora renuncies para sempre o fumo.
Esta condição que
ela me propunha era sagrada, mas busquei esquivar-me a ela de modo mesquinho,
respondendo-lhe:
– Não gastarei mais
um vintém com cigarros.
Não passava isto de
um ignóbil subterfúgio, uma subtileza a que costumam recorrer os escravos do
fumo e da bebida para evitar que sejam obrigados a romper de uma vez com vício.
Durante os três anos que ali estive, toda vez que ia à cidade e alguém me
oferecia um cigarro, nunca o recusava, e quando Luíza me cobrava, eu lhe
respondia:
Num dia de outono,
depois de um verão chuvoso, ao qual havia sucedido uma seca extraordinária, nós
nos dirigimos à cidade. Nosso caminho conduzia através de uma extensa savana,
que media cerca de duas léguas em circunferência, de uma monotonia absoluta,
que não era quebrada nem por córregos, nem por árvores ou simples arbustos, e
cuja erva, que nunca fora calcada pelos pés de algum animal, estava inflamável
como uma mecha.
Pouco tempo antes
eu havia tomado as precauções necessárias para proteger a nossa casa contra a
possibilidade de um fogo de savana. Arara em torno dela um trato de terra, e, a
volta deste um tanto retirado do mesmo, mais uma fita de alguns metros de
largura, destruindo pelo fogo a erva que ficara de permeio.
Que grupo alegre
formávamos, os três! Nossos cavalos, incitados pelo nosso vozerio iam em
disparada na direção da cidade, por essa límpida manhã. É verdade que nossa
carruagem não era das mais modernas. Sabíamos, porém, amortecer os solavancos,
forrando os assentos com grossos cobertores. A criança ia no seu berço.
Feitas as nossas
compras e havendo jantado com os nossos amigos em casa de negociante do qual
éramos fregueses, pusemo-nos, às cinco horas da tarde, a caminho de casa. Nosso
carro ia cheio de gêneros, entre os quais um pote de melaço, uma lata de querosene
e um barrilzinho de água para dessedentar-nos na travessia da savana.
A certa distância
da cidade, disse-me Luíza, com muita brandura:
– Fumaste outra
vez, Jorge.
– Sim, respondi com
mau humor, mas não me custou um vintém. Fato era que o uso do fumo, a que não
estava mais habituado, me havia deixado nervoso e irritadiço, e momentos depois
acrescentava: “terei de ser toda a vida torturado como um rapaz?”.
Luíza não respondeu
palavra, mas a sua visível angústia ainda mais me irritava. Ocupava-se em acalentar
a criança que estava cansada e mal-humorada, deitando-a depois no berço que se
achava atrás de mim. Enquanto a embalava, um demônio qualquer me inspirou a ideia
de ascender um cigarro que ainda trazia no bolso. Quando Luíza voltou a tomar o
seu assento ao meu lado, teve de voltar a cabeça para não se ver obrigada a
respirar a fumaça desse fatal cigarro.
Eu esperava
impacientemente que me dissesse qualquer coisa, porque trazia já na ponta da
língua uma resposta impertinente; ela, porém, calava-se. Depois de haver fumado
mais ou menos metade do cigarro, lancei-o fora.
– É o último, por
enquanto; deve saber que não me custou um vintém, murmurei.
Começou, porém, a
subir-me um calafrio pelas costas, quando, momentos depois, vi que uma delgada
coluna de fumaça se elevava do lugar onde eu havia atirado o coto de cigarro
entre a erva seca, mas logo nos achávamos bastante distante daquele sítio, de
sorte que não pensei mais nisso. Aninha dormia, sossegada no seu berço e Luíza
velava ao seu lado. Depois de alguns momentos de silêncio ouvi-a dizer a meia
vos:
– Trocou sua honra
por um prazer, mas o pagará bem caro.
Minha consciência me
arguia. Vi, em pensamento, diante de meus olhos uma feliz moça que por amor de
mim deixara tudo quanto amava, e eu por um cigarro havia traído a confiança que
ela em mim depositara. Mas não tinha coragem de confessar-lhe este pensamento e
de suplicar-lhe o perdão.
Engolfado nos meus
pensamentos, cheguei a esquecer-me até que Luíza se achava ao meu lado.
Distávamos apenas meia hora de nossa casa, quando, de repente, começou a soprar
um rijo vento norte que até nos fez tremer. Fiz parar os cavalos, coloquei o
berço diante de nós e cobri a criança e Luíza com um xale. Quando me dispunha a
continuar viagem, um ruído medonho soou-me aos ouvidos; não era uma tempestade
que se desencadeava, mas um ruído crepitante e ameaçador que se fazia ouvir
longe, atrás de nós.
– É um furacão!, exclamou
Luíza.
Ah, se fosse
somente isto! Mas eu conhecia perfeitamente esse estrépito. Era o rumor de um
fogo de savana. Logo pudemos distinguir também as labaredas, que avançavam para
nós com uma velocidade espantosa, deixando após si os mais indeléveis vestígios.
– Jorge, é um fogo
de savana! Corre depressa e deita-lhe fogo de encontro, se não estamos perdidos!
Luíza tomou
depressa as rédeas, e os animais, assustados, aos quais o instinto dizia que a
morte vinha no seu encalço, galopavam com fúria, enquanto eu remexia em vão as
minhas algibeiras. Havia gastado o último fósforo para ascender o fatal cigarro,
que tinha causado este horrível incêndio!
– Não tenho
fósforos...! Luíza... Que Deus me perdoe... Poderás tu perdoar-me?
Oh! Como poderei eu
descrever a angústia daquele momento! Nunca poderei esquecer os tormentos
infernais que sofri e que remorsos da consciência podem infligir a uma alma.
– Não cogito disto
agora, meu amado... Não foi uma falta tua, não tiveste essa intenção, estamos
agora próximos à morte. Que Deus nos perdoe a ambos. Ah, mas minha pequenina
Aninha, deverá ela também sucumbir?
Um estremecimento
de horror perpassou todo o meu corpo, enquanto um suor mortal me borbulhava das
faces. Observava o fogo que se aproximava, mas era incapaz de uma reflexão.
Subitamente exclamou Luíza:
– Resta ainda uma
esperança de escapar, Jorge. Derramemos depressa a água e o melaço sobre os
cobertores e refugiemo-nos naquela eminência onde a erva não está tão alta. Ali
podemos deitar-nos dentro do carro e envolver-nos nos cobertores molhados.
Dali a instantes
achávamo-nos no lugar indicado. Desatrelamos os cavalos, assustados, que nos
lançaram um olhar piedoso, desaparecendo em seguida, enquanto deitávamos os
líquidos nos cobertores, parte dos quais estendemos no carro, cobrindo-nos com
o resto.
O estrépido das
chamas era ensurdecedor. A fumaça começava a envolver-nos. O ar estava
impregnado de cinzas, e as chamas se elevavam a grande altura acima de nós. Já
nos havíamos deitado no carro, envoltos nos cobertores, quando Luíza
repentinamente se ergueu e, pegando da lata de petróleo, que havíamos esquecido
ao pé de nós, a arremessou ao longe, com pulso vigoroso. Mas, antes que ela
pudesse voltar de todo para baixo da coberta protetora, o mar de chamas e a
fumaça a tinham atingido.
Pareceu-me ter passado
um século neste inferno, que eu mesmo nos havia preparado. Para a minha alma
culpada era como se fora o dia do juízo final. Afinal o calor cedeu e a
fumaça ia diminuindo. Quando meti a cabeça para fora, via as chamas devoradoras
que já iam longe, em nossa frente. O sol se parecia como uma esfera inflamada
envolta em fumo.
– Oh Luíza!,
exclamei, vendo minha mulher erguer-se vagarosamente ao meu lado.
– Sim, Jorge, estou
viva, respondeu ela: sua voz, porém, estava rouca. Imediatamente se inclinou sobre
o berço, eu tirei os cobertores de sobre Aninha; ela não se mexia. Pensei que
estivesse dormindo.
– Aninha! Aninha! bradamos,
erguendo a criança, mas nenhum sinal de vida!
Friccionando o
corpinho, contávamos chamá-la outra vez de si, mas em vão – estava morta.
Torturado e contrito fui-me arrastando a frente, levando o cadáver da minha
filha, perseguido de uma voz acusadora que incessantemente me dizia: “Tu és o
culpado!”, enquanto minha mulher, com rosto lívido, caminhava ao meu lado, me consolava:
– Jorge, eu te amo
como nunca antes, estou feliz por que me foste conservado; não te aflijas, não
foi a tua intenção pôr fogo a erva.
Da cidade o fogo
fora visto por algumas pessoas que acudiram em nosso auxílio. Estas nos cederam
os seus cavalos. O Sol desaparecia no horizonte quando começamos a descer a
colina que ficava a cavaleiro do pequeno vale em que estava situada a nossa
casa. Porém, nada mais se via. A casa estava reduzida a um montão de escombros!
O nosso gado e os cavalos, que estavam completamente exaustos, eram os únicos
sinais que ainda indicavam o sítio do nosso primitivo Éden.
Luíza por muito
tempo esteve entre a vida e a morte; sua saúde estava minada; seus pulmões
haviam respirado excessiva quantidade de ar quente, e a comoção do susto fizera
uma impressão muito profunda sobre o seu peito. Creio que ela nunca mais se
teria recobrado se não fora por amor de mim, que finalmente eu me teria acusado
de ter sido também o seu assassino.
Nenhuma voz
infantil tornou a alegrar desde então o nosso solitário lar, que fomos
estabelecer num sítio distante daquele que nos evocava a dolorosa lembrança do
que me havia custado o meu último cigarro.
Fonte: livro Pérolas Esparsas
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