Jó Teemann
desempenhava o cargo de guarda-linha na Estrada de Ferro de East-Tennessee e
tinha por obrigação especial vigiar a grande ponte do Hiawassee, que começava
distante uns cem passos de sua casinha. A casinha mesma estava situada num
desfiladeiro por onde passava a dita estrada, constituída por uma linha dupla
que corria por entre a sua casinha e a colina fronteira. Havia uma semana que
chovia e em consequência da excessiva umidade a terra se havia tornado movediça.
– Ocorreu ontem
novo desabamento de terra um pouco abaixo de Sweetwater, disse Jó a seu filho
Rúben, rapaz de treze anos, que, sentado junto ao fogão, se achava ocupado em
talhar uma raqueta.
Jó era viúvo, e o
pequeno Rúben tinha de atender aos cuidados da casa. Fazia-o, porém, de modo tão
pouco satisfatório, que seu pai muitas vezes sentia a necessidade de uma dona
de casa.
– Essas colinas
vermelhas de Tennessee, quando dão de desabar, não param mais, disse Ruben
alçando a raqueta com esta interrogação: Não acha que está boa, papai?
– Penso que sim,
respondeu laconicamente o pai, enquanto se dirigia para a porta a fim de
espreitar ainda uma vez o tempo.
A perspectiva dessa
noite não era muito animadora. O firmamento estava envolto numa escuridão
espessa através da qual descia uma chuva fina. Do lado da ponte vinha um rumor
surdo como se o vento e as águas do rio se houvessem travado de luta. O rio já
tinha transposto as margens, alagando toda a baixada na extensão de mais de um
quilometro.
Pensativo, Jó
fechou a porta e sentou-se junto ao fogão. Dali a nada se ouviu um ruído
estranho e rangente que parecia vir da colina fronteira.
– Que seria aquilo?
Vai ver que... Ia dizendo Jó, mas não chegou a concluir a frase.
O ruído surdo
terminou por um estampido violento. Uma coisa qualquer bateu de frente contra a
casa e esmagou-a como uma casca de ovo. A luz apagou-se. Ao fazer Jó um esforço
para erguer-se, foi arremessado para baixo da mesa, onde ficou imprensado no
meio dos fragmentos que ruíam. Depois de haverem cessado os abalos e o estrépito,
ele sentiu além de outras contusões uma dor lancinante na perna direita. A
escuridão era completa e a chuva lhe batia em cheio na face.
– Onde está, papai?
Perguntou a voz medrosa e aflita do pequeno Ruben. O senhor se machucou?
– Penso que tenho a
perna fraturada, suspirou Jó. Talvez só esteja deslocada. Já o mês passado
adverti ao superintendente do tráfego que esta colina mais cedo ou mais tarde
havia de desabar.
– É o senhor que
está aqui, papai? Disse o rapaz, que se achava agora rente com ele. Pressenti
que o senhor estava machucado, porque ouvi seus gemidos.
– Sim, sou eu, meu
filho; se te fosse possível remover um pouco esse entulho, talvez eu pudesse
safar-me daqui. A linha deve estar obstruída numa grande extensão. Foi um
desabamento de terra, e um desabamento importante.
– Pois bem, disse o
rapaz, empenhando todas as suas forças para remover o entulho. Tratarei
primeiro de libertar o senhor e depois veremos.
– Muito bem, meu
filho, já é bastante; penso que agora com algum esforço poderei safar-me, mas
não deve tardar o expresso, que parte de Laudon às onze e quinze minutos.
Consultei o relógio pouco antes do desabamento e eram dez e meia.
– Não podemos fazer
sinal? Perguntou Ruben.
– Temo que não.
Estou convencido de que as lanternas estão quebradas e demais como seria
possível achá-las debaixo desse entulho? Sabes onde estão os fósforos? Não
tenho nenhum comigo.
Nem fósforos nem
lanternas puderam ser encontrados. Tudo estava provavelmente enterrado. O que
era de admirar é que Jó Teemann e seu filho não estivessem enterrados também.
– Ah, meu Deus! Lamentou
Jó. Por que tínhamos de ser reduzidos a uma tão deplorável situação?
Com a ajuda de seu
filho, Jó havia conseguido sair de sob a mesa, mas não podia andar.
– Estou
completamente moído, disse ele. Não há outro remédio se não ires tu mesmo até
lá, Ruben.
– Até lá... onde,
papai? Até Laudon. Alguém tem de ir até lá para comunicar o ocorrido.
Não acabo de te dizer que o expresso está na hora? Não podemos consentir que
ele se arremesse nesse montão de terra enquanto um de nós ainda puder se
arrastar-se.
– Mas a grande
ponte de dormentes! Quem poderá transpô-la sem lanterna, papai?
– Tens de apalpar o
caminho, Ruben, disse o pai, que tinha resolvido mandar o menino a Laudon, se
bem que com grande risco de vida. Ó Deus, perdoa-me que eu mande o menino! Dizia
o angustiado pai. É cruel, Ruben, mas não há ninguém que possa fazer parar o
trem, somos os únicos aquém da ponte na redondeza de mais de um quilometro.
Ruben hesitou um
instante. Era justo que deixasse ao pai ferido sozinho, mesmo tratando-se de
salvar outros? Jó, porém, acabou de vez com estas hesitações.
– Não tens tempo
nenhum a perder, se queres estar em Laudon antes do trem. Se te não puseres
imediatamente a caminho, obrigar-me-ás a castigar-te quando estiver
restabelecido. Trata-se de salvar vidas.
– Já vou, papai.
Ruben pegou na mão
do pai e apertou-a, depois se retirou, sufocando um soluço que cortou o coração
de Jó.
– Meu Deus,
perdoa-me se faço mal, suspirou Jó, mas nas condições em que me acho me seria
impossível chegar lá em tempo.
Quando Ruben trepou
por cima do monte de terra que obstruía a linha, convenceu-se de que o pai
tinha razão. Era necessário chegar a Laudon, custasse o que custasse. Se o trem
se arremessasse nesse montão de terra, isto custaria a vida a muita gente.
A escuridão era tão
densa, que Ruben só se podia conservar na linha adiantando-se às apalpadelas.
Tateando os trilhos, Ruben foi avançando aos poucos ate que uma lufada de ar,
vinda de baixo, lhe deu a perceber que se encontrava sobre a ponte. Era
necessário transpô-la de gatinhas, e, ainda assim, à pressa, porque dali a
minutos devia chegar o trem.
Chegaria ele a Laudon
antes do expresso? Esse cuidado o afligia ainda mais do que o medo que lhe
infundia a sua difícil empreitada. Troncos de madeira arrastados pela
correnteza das águas chocavam de vez em quando nos pilares da ponte, fazendo-a
estremecer toda. Como o rio tivesse transbordado, vinham troncos de árvores e
outros objetos de todas as direções, procurando sua passagem justamente ali
onde a ponte lhes opunha obstáculos.
“Que seria se
alguma balsa desfeita viesse dar de encontro aos pilares, destruindo a ponte!”
Ruben mal tinha tempo para cogitar na possibilidade de desse perigo, tanto o
seu sentido estava posto em adiantar-se o mais depressa possível para alcançar
o trem.
Finalmente ele
havia transposto a ponte principal, restando-lhe ainda atravessar um trecho de
construção de madeira do outro lado da mesma, e por baixo da qual as águas
igualmente bramiam, despenhando-se na escura profundidade. As forças de Ruben
começavam a diminuir.
Se lhe não fosse
possível transpor aquela extensa construção de madeira, não só estaria
impossibilitado de dar um sinal de alarma, como havia de ser ele próprio
esmagado pelo trem. De repente sentiu um choque desusadamente violento,
como se um objeto de grande peso houvesse dado de encontro aos dormentes. Toda
a construção rangeu atrás dele, mas mal lhe sobejava tempo de pensar na
possível causa desse choque, quanto menos para tratar de verificá-la. Este
incidente, porém, incitou-o a empenhar as suas últimas forças. Cumpria chegar
em tempo à estação, do contrário estava tudo perdido.
Entretanto o pai de
Ruben estivera durante algum tempo deitado, pensando no ocorrido. Depois se
ergueu a custo e espreitou através da escuridão, na direção das águas que
rugiam, até que os olhos lhe começaram a arder. Tanto lhe teria aproveitado espreitar
através de uma muralha de pedra. A escuridão profunda o fez estremecer quando
pensou nos obstáculos terríveis que se haviam de opor a Ruben no seu difícil
caminho. Pensou na sua juventude, nos horrores daquela noite lúgubre, e no que
podia acontecer a seu filho e frustrar sua tentativa.
Esta suspensão de
espírito em que Jó se achava tornou-se lhe finalmente insuportável. De novo
começou a acusar-se por ter obrigado o menino a meter-se em tamanho risco. Por
fim o desejo de ver em segurança o filho talvez chegasse a exceder o seu
cuidado pela salvação dos outros. Depois havia ameaçado até a Ruben com
castigos, se não se desse pressa em pôr-se a caminho.
Dominado por estes
sentimentos de angústia, Jó tentou arrastar-se até a linha, onde começou a divagar,
sem destino, tateando por entre os trilhos, o que apesar da dor que sentia na
perna, contribuía de algum modo para acalmar a tempestade que se lhe havia
desencadeado no espírito. Segundo calculava, havia já bastante tempo que Ruben
partira. Teria ele chegado lá em segurança? Ia Jó se arrastando para a
frente com este pensamento aflitivo, quando viu de repente uma grande luz
surgindo numa curva que ficava aquém de Laudon e avançava para o sítio onde ele
estava.
“Meu Deus, é o
expresso!”, exclamou ele com grande angústia, esquecendo-se com o susto, de
todas as suas dores. “É o trem”. Onde estaria o menino? Ruben talvez não
tivesse chegado em tempo à estação. Que seria feito dele? E qual seria a sorte
do trem que ora se aproximava? Com este pensamento cruel o pobre Jó foi-se
arrastando para a frente, batendo um dormente após outro até que, de repente,
sua mão tateou ... no vácuo. A muito custo conseguiu guardar o
equilíbrio. Com grande precaução repetiu a experiência, e um calafrio
lhe percorreu a espinha. Evidentemente parte da ponte havia sido arrastada pela
torrente. “Foram balsas que causaram isto”, disse Jó, tiritando de frio.
“E aí vem o trem. Qual seria a sorte do menino?”
Como um
desesperado, o pai, deitado sobre os dormentes úmidos e torturado pela dor,
erguia as mãos convulsivas: “Meu filho! Meu filho Ruben!”. Foi tudo o que
conseguiu dizer, enquanto o coração se lhe ameaçava partir. O trem, com os seus
grandes olhos de fogo, se aproximava; e aí estava ele sobre os trilhos sem
poder fazer coisa alguma. Toda tentativa para lançar um grito de alarme foi
baldada. Ao passo que o ruído da locomotiva e o rumor das águas na profundeza
lhe penetravam na alma, pareceu-lhe ver diante dos olhos como que centenas de
luzes dançando em torno dele e zombando da sua angústia e, de repente, uma
vertigem fez cair tudo num silêncio profundo.
– Papai! Papai! Não
há quem possa fazê-lo tornar à vida? Como teria ele caído aqui em baixo?
– Sossegue, meu
rapaz! Ele logo tornará a si. Sinto distantemente o pulsar do seu coração.
Quando Jó Teemann
abriu os olhos, foi esta a sua primeira pergunta: “onde está meu filho? Onde
está Ruben?”.
Ruben, porém, já
havia caído nos braços do pai e não encontrava palavras para exprimir a sua
alegria por ter tornado a achá-lo. Agora o guarda-linha indagou acerca do trem.
– Cheguei
justamente a tempo à estação de Laudon, papai – disse-lhe Ruben.
Falando-lhes então
do desabamento de terra e do seu estado, estes homens tomaram-me a si na
locomotiva e vieram devagar até aqui a fim de conhecer a situação. Eu lhes
disse que uma parte da ponte devia ter ruído atrás de mim, porque essa foi a
sensação que tive do estremecimento causado pelo choque. Assim, tomamos o bote
da diretoria da estação e chegamos justamente aqui, onde o encontramos estendido
sobre os dormentes. Não correu tudo às maravilhas, papai?
Os empregados da
Estrada de Ferro tomaram, pois, a Jó o seu pequeno salvador, na locomotiva, e
cinco minutos depois estavam eles na estação de Laudon, rodeados de uma grande
multidão de passageiros curiosos e agradecidos. Que não faltaram nessa
ocasião, as atenções por parte dos viajantes reconhecidos e durante esse
inadvertido tempo de espera; e que o pequeno Ruben foi festejado como o herói
do dia, será desnecessário acrescentar.
Fonte: livro
Pérolas Esparsas
Nenhum comentário:
Postar um comentário