Por Flávio Azevedo - Reflexões
Penso que Roberto DaMatta, no livro “A Casa & a Rua” (Editora Rocco), consegue explicitar bem o que eu, junto com muitos amigos venho pensando e debatendo, sobretudo quando a discussão tem como alvo os meandros sórdidos da política, onde reina o “farinha pouca, meu pirão primeiro”, os favores e a avidez popular por benefícios individuais e nunca os coletivos. Aliás, quem nunca foi atingido pela sensação do “larga isso pra lá, porque não tem jeito”? Mas aí entra a observação do antropólogo que consegue explicar o que, às vezes, parece inexplicável.
Segundo Roberto DaMatta, a sociedade brasileira se baseia nas RELAÇÕES e não na CIDADANIA (individual x coletivo). Pelo contrário, ser cidadão é feio e esse título, curiosamente, é atribuído aos marginais. Quando o indivíduo é preso, ele é apresentado da seguinte forma: “esse CIDADÃO foi pego em flagrante”. Se alguém está cometendo uma infração, a abordagem é a seguinte: “Oh CIDADÃO, você sabia que...”.
Porém, se o infrator é da relação de amigos, o policial que o surpreende cometendo o delito, se é que vai detê-lo, chegará à delegacia dizendo: “infelizmente... O meu amigo foi pego numa situação complicada... Mas ele é gente boa...”. Outro exemplo: se o meu amigo está cometendo um delito, a minha abordagem é baseada no afago, e é possível que o delinquente, para me atender – não a lei – deixe de cometer o delito. Uma realidade perversa que destrói totalmente o sentido de cidadania e de igualdade tão propalado, mas nunca executado.
O serviço público nunca é procurado sem antes um MEDIADOR ser consultado. O mediador é aquele cara que abre portas. Que vai colocar você na frente dos outros. Que vai adiantar o seu lado. Ele vende facilidade! É a figura do DESPACHANTE, que eu considero, sob o viés do texto de Roberto DaMatta, a institucionalização do “jeitinho” e até da possibilidade de burlar as leis e códigos civis.
Ou seja, se o Serviço Único de Saúde (SUS) não funciona, essa realidade é apenas para aqueles que não têm relações, porque quem conhece alguém, consegue liberar, e, com rapidez, exame, remédio, cirurgia, internação etc. O cidadão que entrou na fila, também é contribuinte, tem igual ou maior necessidade, mas por não ter relações não consegue o atendimento. Logo, quem foi beneficiado ficará em silêncio, porque para ele, aquilo que não funciona está ótimo, a final, para ele funcionou.
A reclamação só surgirá quando a ele for vedado o “entrar pela janela”. Isso geralmente acontece, quando existe uma troca de governo, onde quem entra tem outras relações. Traduzindo, “muda-se a mosca, mas a merda é a mesma”. Diante do novo cenário surgem os insatisfeitos, as denúncias... Que parte de gente que até recentemente dizia ser tudo muito bom. Agora, porém, embora a lógica seja a mesma, repentinamente tudo ficou ruim. Na verdade, ficou ruim porque o insatisfeito perdeu privilégios. Mas para quem tem relações no novo governo, tudo melhorou!
Existe, porém, outra possibilidade, geralmente pouco observada. É que passado algum tempo, aquele órfão de relações consegue estabelecer nova relações com o esse grupo hegemônico. Através dessas novas relações, ele volta a entrar pela janela, a passar na frente dos outros, e como que num passe de mágica, tudo aquilo que até ali era ruim e motivava a sua crítica ficará muito bom!
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