Em entrevista exclusiva, concedida antes da operação Cadeia Velha, o juiz à frente da Lava-Jato no Rio, Marcelo Bretas, afirma que a corrupção no estado se assemelha a uma ‘metástase’. E, um ano depois da prisão do ex-governador Sérgio Cabral, diz que a Justiça se modernizou para impedir o ‘triunfo das nulidades’.
Há um ano, o senhor prendeu o Sérgio Cabral, que foi o homem mais poderoso do estado. Que balanço o senhor faz desse período?
Para mim, não existe homem mais importante. Não tenho essa preocupação. Minha preocupação é se é crime e se aquele ato investigado está na minha competência. Estamos aprendendo a fazer uma nova Justiça, que é rápida, se dedica e vai a fundo na investigação, doa a quem doer. A preocupação é ser rápido e sempre respeitar os direitos (dos réus). Temos pouca ou nenhuma reclamação de violações de direito.
Ficou surpreso com o tamanho do esquema de corrupção no Rio?
Posso falar sobre o processo da Operação Calicute, que já foi julgado. O que me assustou, naquele caso, foi a extensão e a capilaridade. Parece que tem mais gente envolvida do que não envolvida. É uma metástase. A cada hora surgia um personagem novo.
Não demorou muito para o esquema de corrupção ser descoberto?
A percepção é de que os órgãos de controle não estavam exercendo suas funções. Já disse isso (na decisão sobre a prisão de Cabral) e repito. Tanto é assim, que depois foi iniciada uma investigação, ainda em curso no Superior Tribunal de Justiça, sobre integrantes do Tribunal de Contas do Estado.
Como avalia o comportamento de Cabral ao longo das audiências? Ele disse que o senhor estava buscando promoção pessoal às custas dele...
Não posso questionar, porque o advogado tem total liberdade de orientá-lo. Já tivemos momentos mais tensos e menos tensos. Não mudo de acordo com o réu. Tenho a noção de que o réu está passando por um drama pessoal e procuro respeitar.
Há notícias de que ele tem regalias na prisão...
Muito é dito, mas pouco é trazido à Justiça. Quando foi trazido, eu decidi (quando transferiu Cabral a Curitiba). Tenho a responsabilidade de decidir, mas, infelizmente, as questões não têm sido trazidas para serem avaliadas. Isso é uma atribuição do Ministério Público Federal e Estadual.
O senhor aceitou o pedido de desculpas do ex-governador?
Entendi que as desculpas aconteceram pelo ambiente gerado. Se há, ou se houver, investigações por movimentos irregulares (elaboração de dossiês contra o juiz e procuradores), ela seguirá independentemente de qualquer pedido de desculpas.
O senhor realmente viu uma ameaça nas declarações de Cabral?
Mais importante do que ter recebido como ameaça, foi a informação de que ele (Cabral) estava recebendo dados (na cadeia). Além de falar que minha família trabalha com bijuterias, o que é público, ele disse que era a maior do estado, o que não é público. Tive a impressão de que foi uma mensagem subliminar. Ele fala: “Foi a informação que me chegou”. Tive uma primeira impressão de que poderia estar passando uma mensagem de intimidação com informações que não eram públicas. Não vi propriamente uma ameaça, mas uma forma de intimidação, porque ele mencionou uma informação que não é de domínio público. Se tem uma coisa que não admito, é alguma forma de me intimidar a não fazer meu trabalho. Quem está a muitos quilômetros de distância e vai só ver o vídeo da audiência pode não ter condições de avaliar se foi uma forma de intimidação (referência ao ministro Gilmar Mendes, do STF, que suspendeu a transferência de Cabral a um presídio federal).
Há uma investigação sobre a montagem de um dossiê, pelo Cabral, com informações do senhor e da sua família.
Não quero falar sobre isso. Se é que há, não está e nem estará sob minha responsabilidade.
Está preocupado com a segurança?
Eu cuido, porque tenho que ser responsável, mas não temo e não vivo com medo. Tenho recebido todo o apoio do Tribunal (Regional Federal da 2ª Região) e do Conselho da Justiça Federal. Conversei com a ministra Laurita Vaz (presidente do STJ) e com o corregedor do Conselho da Justiça Federal, ministro Raul Araújo. Não tenho que viver com medo. Tenho que fazer meu trabalho, mas deixei de recusar medidas de segurança.
O senhor acredita que um empresário dá dinheiro a um gestor público sem que haja uma combinação clara de contrapartida? Cabral e Sérgio Côrtes reconhecem que receberam dinheiro, mas negam relação com vantagens em contratos.
Posso falar da Calicute, o que decidi lá. Naquela ocasião, não concordei com essa tese (dos réus; Côrtes não era réu naquela ação). Consignei, na sentença da Calicute, que se tratava de um simples jogo de palavras. Ali, eu não acreditei, disse que o argumento era fantasioso, mas não posso falar sobre casos em andamento.
Para quando vê o fim da Lava-Jato?
Não vejo fim para hoje. A Lava-Jato é mais do que um conjunto de operações. É uma nova cultura de combate à corrupção. A Lava-Jato é eterna, não eu, não o (Sergio) Moro.
A Lava-Jato no Rio poderia estar andando mais rápido?
Estamos há meses aguardando providências a cargo de instâncias superiores. Então, nossa velocidade aqui é metade do que poderia estar sendo.
Alguns advogados dizem que existe o Direito Penal dos códigos e o Direito Penal da Lava-Jato...
Existe o Direito Penal antigo e o moderno. No processo antigo, se o juiz espirrasse em cima do processo, anulava tudo e soltava todo mundo. Eventualmente, alguns advogados poderiam cobrar milhões por uma causa e distribuir presentes e agrados a não sei quem. Agora, a gente tem o Direito Penal verdadeiro. Rui Barbosa já lamentava há cem anos o triunfo das nulidades.
Quando houve a mudança?
Foi a atuação do Supremo na ação penal 470 (mensalão). Acompanhei aquelas sessões e gostei muito do que vi. Eram juízes julgando pessoas, e não vi favorecimento (em função da influência dos réus).
As delações ajudaram esse Direito Penal moderno?
Já existia a possibilidade de o réu ser recompensado se ajudasse nas investigações, mas a lei das delações premiadas permitiu uma negociação mais aberta. Aumentou o poder de barganha do Ministério Público, o que tem colaborado para a descoberta de esquemas ilícitos e agentes corruptos.
A Polícia Federal pode firmar delação premiada?
Pode fazer, porque a lei permite, mas o que a gente tem que discutir é a utilidade disso. A Polícia Federal poderia fazer uma colaboração, levar ao Ministério Público e obrigá-lo a entregar à Justiça para homologação? Não. E o titular da ação penal é o Ministério Público. Se ele não quiser aceitar (a colaboração), não há quem possa obrigá-lo.
O que pode melhorar na negociação das delações?
Vejo muito rigor do Ministério Público Federal para não acontecer o que ocorreu em casos recentes (episódio da JBS). Esse controle tem que ser feito, e o juiz pode fazer. O Ministério Público pode muito, mas não pode tudo. Não pode deixar fora (da investigação) crimes que foram relatados, por exemplo.
Como vê a possibilidade de restrições às delações premiadas, defendidas inclusive em projetos de lei?
Restringir delação é um absurdo. Para quem está colaborando, é um direito de defesa. Não se pode restringir esse direito a pretexto de proteger investigados.
Já há forte reação da classe política contra a Lava-Jato.
Tem e sempre terá . O empresário que se corrompe, que tem uma unidade produtiva, sabe que pode se reerguer. Mas o político corrupto não tem vida própria, é um parasita. Se tirar o poder dele, vai morrer de fome. Grande parte dos colaboradores, normalmente, são empresários. Quem está lutando contra, normalmente, é agente público envolvido com corrupção.
O ministro Luís Roberto Barroso já falou em “operação abafa”.
Confio na percepção dele e concordo plenamente. Exemplos disso são as tais leis aprovadas na madrugada. Desconfio que, na véspera dos feriados de fim de ano, haja tentativa de aprovar mais leis que dificultem as investigações.
Vários investigados presos pelo senhor foram soltos pelo ministro Gilmar Mendes. Como vê a reversão das decisões?
Sou proibido de fazer qualquer comentário sobre decisões de tribunais superiores. Para mim, mais importante do que receber decisão contrária de instância superior, é ter a tranquilidade de que se trata de uma decisão puramente técnica e imparcial.
Admira algum ministro do STF?
Devo respeito e obediência a todos, mas devo registrar uma admiração pessoal pelo decano, ministro Celso de Mello, que desde estudante foi minha referência em Direito Constitucional. Assim como pela presidente, Cármen Lúcia, e pelos ministros Luís Roberto Barroso, Rosa Weber, Luiz Fux, Edson Fachin e também Alexandre de Moraes, a quem sempre vi como excelente professor de Direito Constitucional (Bretas cita todos os ministros, à exceção de Gilmar Mendes, Marco Aurélio Mello, Dias Toffoli e Ricardo Lewandowski).
O que achou da decisão do STF de permitir às casas legislativas a palavra final sobre medidas cautelares impostas a parlamentares?
Não posso comentar decisões do STF, mas faço uma análise política do dia a dia das investigações criminais. A impressão que tenho é que essa situação, aliada ao foro privilegiado, poderia criar categorias de pessoas imunes ao Direito Penal.
Há a possibilidade de o STF proibir novamente a prisão após decisão em segunda instância.
Respeito qualquer decisão, porque o Supremo é digno de todo meu respeito e obediência. A prisão após condenação em segunda instância foi um golpe muito grande na corrupção. Quando o Tribunal (segunda instância) confirma a sentença condenatória, os recursos disponíveis à defesa já não têm efeito suspensivo, então a decisão tem que ser aplicada. Apenas questões de direito, não de fato, serão discutidas no STJ (Superior Tribunal de Justiça). Qualquer coisa diferente pode dar a impressão de uma desconfiança exagerada sobre a qualidade do trabalho das instâncias inferiores.
O que acha do foro privilegiado?
Não faço crítica a nenhum tribunal, mas o local adequado para julgar fatos criminosos são juízos de primeira instância. Os tribunais não têm estrutura e especialização para tocar esse tipo de investigação.
O senhor deu as penas mais altas da Lava-Jato, ao Cabral e ao almirante Othon...
Tem que ler a fundamentação das penas. Procurei colocar no papel a importância das pessoas e a gravidade do que elas fizeram. Esses dois casos, para mim, são de extrema gravidade. A quem muito é dado, muito é exigido. Já sentenciei alguém que foi juiz (Fávio Roberto de Souza, flagrado usando um carro de Eike Batista) e disse na sentença que o via como hipócrita.
O senhor se considera rigoroso?
Recentemente, absolvi a esposa de um acusado. Apliquei redução de pena aos corréus que colaboraram (com as investigações). Gasto um bom tempo fazendo a dosimetria das penas exatamente para identificar a participação de cada acusado.
As investigações da Lava-Jato chegaram ao Legislativo e ao Executivo, mas não ao Judiciário. Como vê isso?
Se for juiz, quem julga é o tribunal, e se for desembargador, é o STJ. Não tenho atribuição para isso. Mas, para eliminar qualquer dúvidas, as investigações não podem parar, atingindo a quem tiver que atingir.
Como imagina o futuro?
Minha preocupação nem é o presente, que já cansa muito. Quem está envolvido e sente a aprovação da sociedade tem o desejo de responder a isso com o trabalho. O que me preocupa é depois, mas meu futuro está nas mãos de Deus.
Vislumbra virar desembargador ou ministro?
Gosto muito do meu trabalho. Estou feliz onde estou. Gostaria de permanecer aqui.
Já sondaram o senhor para entrar na política?
Nunca.
Tem vontade?
Zero. Jamais. Não é minha vocação, nunca foi. Mas democracia não se faz sem políticos. Cada um tem o seu papel. O problema é o ato de corrupção.
Qual é a expectativa do senhor para as eleições de 2018?
Que haja boas escolhas. A Lava-Jato terá dado uma grande contribuição se tiver ajudado na escolha de bons políticos.
O senhor já pensou em desistir?
Ainda não pensei, mas é um ritmo muito intenso. É difícil e cansa bastante.
O senhor fez alguma autocrítica sobre esse período de atuação na Lava-Jato?
Fiz tudo que achava correto. O que, ao longo do tempo, fui mudando é que vim restringindo ao máximo o uso de condução coercitiva. Não vejo tanta necessidade, mas não descarto usar, dependendo do caso.
Fonte: O Globo
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