segunda-feira, 3 de junho de 2013

O preço do último cigarro

O meu primeiro cigarro custou-me uma horrível dor de cabeça. Todos os meus camaradas haviam tentado persuadir-me disso, mas como me tivesse na conta de um rapaz extraordinário, pensei que faria uma exceção à regra e não teria de sofrer tais consequências. A experiência que se seguiu logo me convenceu da justeza de suas predições. Como, porém, tinha ouvido minha mãe muitas vezes dizer que eram necessários grandes esforços e perseverança para fazer um homem, supus que isto implicava também um tal esforço, pelo que persisti na tentativa até que aos vinte anos já me havia tornado fumante inveterado, mas alquebrado em forças como meu avô, e ainda mais nervoso do que ele.

Casei-me aos vinte e três. Fisicamente eu era um marido aniquilado. A requisição de meu médico, que me disse que eu deixaria minha mulher na viuvez caso continuasse mais um ano na burocracia e com esse abominável vício, tomei mulher e filha e parti para o extremo ocidente, onde alguns de meus amigos já me haviam precedido algum tempo antes. Arrendei um sítio a cinco quilômetros da cidade – sítio com boas matas e abundante água, que me prometia excelentes negócios. Minha saúde estava outra vez restabelecida de modo a permitir-me trabalhar da manhã até a noite. Luíza era boa mulher e excelente companheira; e nossa filhinha, que ao tempo do meu último cigarro começava justamente a balbuciar, era o Sol e a alegria de nossa casa.

Depois de três anos de demora ali, eu possuía dezesseis hectares de milho e oito de trigo, além de grandes pastagens. Nossa casinha era muito pitoresca e bem arranjada. A primeira choça eu havia transformado em celeiro de trigo. Quando comunicara a Luíza o que me havia declarado médico, ela, sem resposta a minha pergunta, se estava pronta a deixar pai, mãe e amigas para ir comigo em busca de uma nova pátria no longínquo ocidente, dissera:
– Sim, Jorge, irei contigo para onde fores, e tudo farei que seja para teu bem, com a condição de que agora renuncies para sempre o fumo.

Esta condição que ela me propunha era sagrada, mas busquei esquivar-me a ela de modo mesquinho, respondendo-lhe:
– Não gastarei mais um vintém com cigarros.

Não passava isto de um ignóbil subterfúgio, uma subtileza a que costumam recorrer os escravos do fumo e da bebida para evitar que sejam obrigados a romper de uma vez com vício. Durante os três anos que ali estive, toda vez que ia à cidade e alguém me oferecia um cigarro, nunca o recusava, e quando Luíza me cobrava, eu lhe respondia:
– Eu só te prometi não gastar mais dinheiro em cigarros.

Num dia de outono, depois de um verão chuvoso, ao qual havia sucedido uma seca extraordinária, nós nos dirigimos à cidade. Nosso caminho conduzia através de uma extensa savana, que media cerca de duas léguas em circunferência, de uma monotonia absoluta, que não era quebrada nem por córregos, nem por árvores ou simples arbustos, e cuja erva, que nunca fora calcada pelos pés de algum animal, estava inflamável como uma mecha.

Pouco tempo antes eu havia tomado as precauções necessárias para proteger a nossa casa contra a possibilidade de um fogo de savana. Arara em torno dela um trato de terra, e, a volta deste um tanto retirado do mesmo, mais uma fita de alguns metros de largura, destruindo pelo fogo a erva que ficara de permeio.

Que grupo alegre formávamos, os três! Nossos cavalos, incitados pelo nosso vozerio iam em disparada na direção da cidade, por essa límpida manhã. É verdade que nossa carruagem não era das mais modernas. Sabíamos, porém, amortecer os solavancos, forrando os assentos com grossos cobertores. A criança ia no seu berço.

Feitas as nossas compras e havendo jantado com os nossos amigos em casa de negociante do qual éramos fregueses, pusemo-nos, às cinco horas da tarde, a caminho de casa. Nosso carro ia cheio de gêneros, entre os quais um pote de melaço, uma lata de querosene e um barrilzinho de água para dessedentar-nos na travessia da savana.

A certa distância da cidade, disse-me Luíza, com muita brandura:
– Fumaste outra vez, Jorge.
– Sim, respondi com mau humor, mas não me custou um vintém. Fato era que o uso do fumo, a que não estava mais habituado, me havia deixado nervoso e irritadiço, e momentos depois acrescentava: “terei de ser toda a vida torturado como um rapaz?”.

Luíza não respondeu palavra, mas a sua visível angústia ainda mais me irritava. Ocupava-se em acalentar a criança que estava cansada e mal-humorada, deitando-a depois no berço que se achava atrás de mim. Enquanto a embalava, um demônio qualquer me inspirou a ideia de ascender um cigarro que ainda trazia no bolso. Quando Luíza voltou a tomar o seu assento ao meu lado, teve de voltar a cabeça para não se ver obrigada a respirar a fumaça desse fatal cigarro.

Eu esperava impacientemente que me dissesse qualquer coisa, porque trazia já na ponta da língua uma resposta impertinente; ela, porém, calava-se. Depois de haver fumado mais ou menos metade do cigarro, lancei-o fora.
– É o último, por enquanto; deve saber que não me custou um vintém, murmurei.

Começou, porém, a subir-me um calafrio pelas costas, quando, momentos depois, vi que uma delgada coluna de fumaça se elevava do lugar onde eu havia atirado o coto de cigarro entre a erva seca, mas logo nos achávamos bastante distante daquele sítio, de sorte que não pensei mais nisso. Aninha dormia, sossegada no seu berço e Luíza velava ao seu lado. Depois de alguns momentos de silêncio ouvi-a dizer a meia vos:
– Trocou sua honra por um prazer, mas o pagará bem caro.

Minha consciência me arguia. Vi, em pensamento, diante de meus olhos uma feliz moça que por amor de mim deixara tudo quanto amava, e eu por um cigarro havia traído a confiança que ela em mim depositara. Mas não tinha coragem de confessar-lhe este pensamento e de suplicar-lhe o perdão.

Engolfado nos meus pensamentos, cheguei a esquecer-me até que Luíza se achava ao meu lado. Distávamos apenas meia hora de nossa casa, quando, de repente, começou a soprar um rijo vento norte que até nos fez tremer. Fiz parar os cavalos, coloquei o berço diante de nós e cobri a criança e Luíza com um xale. Quando me dispunha a continuar viagem, um ruído medonho soou-me aos ouvidos; não era uma tempestade que se desencadeava, mas um ruído crepitante e ameaçador que se fazia ouvir longe, atrás de nós.
– É um furacão!, exclamou Luíza.

Ah, se fosse somente isto! Mas eu conhecia perfeitamente esse estrépito. Era o rumor de um fogo de savana. Logo pudemos distinguir também as labaredas, que avançavam para nós com uma velocidade espantosa, deixando após si os mais indeléveis vestígios.
– Jorge, é um fogo de savana! Corre depressa e deita-lhe fogo de encontro, se não estamos perdidos!

Luíza tomou depressa as rédeas, e os animais, assustados, aos quais o instinto dizia que a morte vinha no seu encalço, galopavam com fúria, enquanto eu remexia em vão as minhas algibeiras. Havia gastado o último fósforo para ascender o fatal cigarro, que tinha causado este horrível incêndio!
– Não tenho fósforos...! Luíza... Que Deus me perdoe... Poderás tu perdoar-me?

Oh! Como poderei eu descrever a angústia daquele momento! Nunca poderei esquecer os tormentos infernais que sofri e que remorsos da consciência podem infligir a uma alma.
– Não cogito disto agora, meu amado... Não foi uma falta tua, não tiveste essa intenção, estamos agora próximos à morte. Que Deus nos perdoe a ambos. Ah, mas minha pequenina Aninha, deverá ela também sucumbir?

Um estremecimento de horror perpassou todo o meu corpo, enquanto um suor mortal me borbulhava das faces. Observava o fogo que se aproximava, mas era incapaz de uma reflexão. Subitamente exclamou Luíza:
– Resta ainda uma esperança de escapar, Jorge. Derramemos depressa a água e o melaço sobre os cobertores e refugiemo-nos naquela eminência onde a erva não está tão alta. Ali podemos deitar-nos dentro do carro e envolver-nos nos cobertores molhados.

Dali a instantes achávamo-nos no lugar indicado. Desatrelamos os cavalos, assustados, que nos lançaram um olhar piedoso, desaparecendo em seguida, enquanto deitávamos os líquidos nos cobertores, parte dos quais estendemos no carro, cobrindo-nos com o resto.

O estrépido das chamas era ensurdecedor. A fumaça começava a envolver-nos. O ar estava impregnado de cinzas, e as chamas se elevavam a grande altura acima de nós. Já nos havíamos deitado no carro, envoltos nos cobertores, quando Luíza repentinamente se ergueu e, pegando da lata de petróleo, que havíamos esquecido ao pé de nós, a arremessou ao longe, com pulso vigoroso. Mas, antes que ela pudesse voltar de todo para baixo da coberta protetora, o mar de chamas e a fumaça a tinham atingido.

Pareceu-me ter passado um século neste inferno, que eu mesmo nos havia preparado. Para a minha alma culpada era como se fora o dia do juízo final. Afinal o calor cedeu e a fumaça ia diminuindo. Quando meti a cabeça para fora, via as chamas devoradoras que já iam longe, em nossa frente. O sol se parecia como uma esfera inflamada envolta em fumo.
– Oh Luíza!, exclamei, vendo minha mulher erguer-se vagarosamente ao meu lado.
– Sim, Jorge, estou viva, respondeu ela: sua voz, porém, estava rouca. Imediatamente se inclinou sobre o berço, eu tirei os cobertores de sobre Aninha; ela não se mexia. Pensei que estivesse dormindo.
– Aninha! Aninha! bradamos, erguendo a criança, mas nenhum sinal de vida!

Friccionando o corpinho, contávamos chamá-la outra vez de si, mas em vão – estava morta. Torturado e contrito fui-me arrastando a frente, levando o cadáver da minha filha, perseguido de uma voz acusadora que incessantemente me dizia: “Tu és o culpado!”, enquanto minha mulher, com rosto lívido, caminhava ao meu lado, me consolava:
– Jorge, eu te amo como nunca antes, estou feliz por que me foste conservado; não te aflijas, não foi a tua intenção pôr fogo a erva.

Da cidade o fogo fora visto por algumas pessoas que acudiram em nosso auxílio. Estas nos cederam os seus cavalos. O Sol desaparecia no horizonte quando começamos a descer a colina que ficava a cavaleiro do pequeno vale em que estava situada a nossa casa. Porém, nada mais se via. A casa estava reduzida a um montão de escombros! O nosso gado e os cavalos, que estavam completamente exaustos, eram os únicos sinais que ainda indicavam o sítio do nosso primitivo Éden.

Luíza por muito tempo esteve entre a vida e a morte; sua saúde estava minada; seus pulmões haviam respirado excessiva quantidade de ar quente, e a comoção do susto fizera uma impressão muito profunda sobre o seu peito. Creio que ela nunca mais se teria recobrado se não fora por amor de mim, que finalmente eu me teria acusado de ter sido também o seu assassino.

Nenhuma voz infantil tornou a alegrar desde então o nosso solitário lar, que fomos estabelecer num sítio distante daquele que nos evocava a dolorosa lembrança do que me havia custado o meu último cigarro.

Fonte: livro Pérolas Esparsas

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